Tuesday, January 29, 2008

Um dia diferente

Naquele dia o habitual repicar matinal do sino na torre da igreja matriz, contígua ao castelo mourisco de onde se podia ver o mar, pareceu-lhe algo diferente. Assomou-se à janela do quarto onde dormia há mais de 50 anos à procura dos familiares e reconfortantes tons da natureza que cercava o casoto branco de piso térreo, e que todas as manhãs lhe lembravam de que viver ainda valia a pena.
Rudolfo Capela precisava desse estímulo como de pão para a boca. Desde a morte da mulher que se entregara a uma solidão profunda, disfarçada apenas pelas breves visitas semanais à Venda Grande de onde trazia consigo notícias do dia-a-dia do lugarejo.
Tinha por única companhia as laranjeiras e a horta a que se dedicava com um fulgor extremo e uma azáfama diária que lhe conferiam com toda a propriedade a sua única razão de viver.
Não pensava na solidão. Na realidade não pensava em nada. Habituara-se a sobreviver ao ritmo da natureza e do passar dos dias.
Naquele dia, no entanto, sentiu-se tomar consciência. Começou com um leve suspiro e em breves instantes a salada de cores que avistava pela janela deixou de lhe parecer colorida. Pensou que de nada servia o seu trabalho pois a natureza seria sempre mais forte e poderosa do que as suas acções repetidas todos os dias em esforços escusados para a dominar. Pensou que era apenas uma triste criatura, impotente para com a vida e para com a ordem das coisas.
Rendeu-se. Naquele dia baixou os braços. Sentou-se na soleira e ali permaneceu imóvel, de expressão abandonada. Abandonou-se abandonando o que o mantinha vivo. Era só mais um dia, mas este era diferente e jamais os que se seguiriam voltariam a ser como antes. Sabia-o, e sabia também que os dias que se seguiriam seriam já poucos, muito poucos.

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